Apontadas equivocadamente como “sexo frágil”, as mulheres lutam diariamente contra as desigualdades de gênero, violências e opressões, na busca por equidade e emancipação feminina. O resultado desse conjunto é o conceito de feminismo, um movimento social, político e econômico de luta pelo direito de todas as mulheres, independentemente de cor, raça, religião, nacionalidade, orientação sexual e classe social. Portanto, é prepotente e ignorante invalidar a importância e necessidade do movimento.
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Carolina Oms, diretora institucional da AzMina, instituto feminista independente, destaca que, embora discursos machistas digam contrário, seguir o feminismo hoje é imprescindível para ascensão das mulheres, afinal a sociedade patriarcal nunca deixou de existir. “Nossas conquistas são recentes, e a sociedade ainda não assimilou. Em termos culturais, são legais, mas a autonomia da mulher ainda é restrita na sociedade cultural, e isso reflete inclusive na aplicação das leis”, pondera.
Direito ao voto, ao divórcio, ao trabalho e muitos outros são resultados da luta feminista. Carolina credita: “Todas essas conquistas não teriam êxito sem o feminismo! Elas jamais seriam dadas gratuitamente por homens, pelo contrário, foram tiradas das mulheres ao longo de séculos.”
Sociedade patriarcal
Os dados provam a opressão, desigualdade e violência contra as mulheres. Segundo um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) publicado na véspera do Dia Internacional da Mulher, o Brasil registrou em 2021 um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas.
A supremacia machista também é destacada na falta de oportunidade feminina em cargos de liderança e na diferença salarial entre gêneros. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que em 2019 as mulheres ocuparam apenas 37,4% dos cargos gerenciais e receberam 22,3% a menos que os homens.
“Sofremos ataques porque acham que problematizamos, que é ‘mimimi’. Esse tipo de fala é tentativa de silenciar as mulheres que estão denunciando essa estrutura de regime patriarcado. Tivemos sim algumas conquistas, mas a mudança de estrutura não aconteceu”, afirma a psicóloga feminista Lavínia Palma, explicando que o patriarcado é um sistema de domínio dos homens sobre as mulheres.
Em um trecho do livro “Sobrevivi… posso contar” (1994), Maria da Penha salienta: “Apesar de nossas conquistas, mesmo não tendo as melhores oportunidades, ainda costumam dizer que somos inferiores, e isso continua a transparecer em comentários públicos, piadas, letras de músicas, filmes ou peças de publicidade. Dizem que somos más motoristas, que gostamos de ser agredidas, que devemos nos restringir à cozinha, à cama ou às sombras.”
Lavínia descreve o machismo como “uma ideia de que o homem é superior à mulher. Isso está por todo canto. Hoje em dia ele é mais ‘refinado’, digamos assim, pois os homens sabem que não podem fazer certas coisas, como bater nas mulheres [embora continuem, como mostram os dados].”
Atualmente é comum o machismo “disfarçado”, muitas vezes de opinião, piadas ignorantes e posicionamento, exemplos: homens que sentem no direito de avaliar mulheres, as interrompem, as invalidam, se apropriam de suas falas e até mesmo o próprio cavalheirismo, que descapacita a autonomia feminina.
“Precisamos ter cuidado, comportamento questionador e visão crítica, desnaturalizando alguns comportamentos, como falas do tipo ‘homem é assim mesmo’ e ‘mãe tem que ser assim mesmo [sobrecarregada]’, por exemplo, essas falas não são normais! Isso é cultural, é construção social”, observa a psicóloga.
A ideia de engajar a psicologia feminista partiu da observação de queixas comuns entre as pacientes de Lavínia, que refletem a tirania, como questões relacionadas a ditadura da beleza (cobrança estética), sobrecarga materna, muitas vezes ocasionada pelo descompromisso paterno, e relacionamento amoroso. “Somos socializadas dessa forma: precisamos ser amadas por alguém para podermos nos amar. Relacionamento é a maior queixa, inclusive para quem não está em uma relação. Afinal, temos uma construção de que o amor é um serviço para as mulheres, e isso não tem o mesmo papel na vida dos homens. Somo avaliadas e medidas a partir de nossa relação amorosa.”
O feminismo e seus mitos
O feminismo é uma luta feminina, um movimento que coloca as mulheres no protagonismo. Portanto, não, homens não podem ser considerados feministas, e sim pró-feministas.
Ana Clara Almeida Silva, psicóloga feminista e supervisora clínica de transtornos de personalidade e bipolaridade, analisa: “Muitos desses [homens] que se dizem ‘feministas’ ou ‘feministos’ falam sobre a liberdade sexual da mulher. No entanto, é uma liberdade para os servir [típico do machismo] e vai até onde é bom para eles, como o sexo a três. A maioria dos homens que quer um ménage à trois só aceita a participação de outras mulheres, alguns nem entendem o quanto isso é machista. Existe um fetiche com a homossexualidade feminina devido à pornografia.”
A especialista reflete sobre o feminismo liberal. Conforme ela, quem mais se beneficia dessa questão liberal são os homens, pois toda vez que a mulher expõe seu corpo, ela acredita que está empoderando, mas a verdade é que eles não estão vendo dessa forma. “Um movimento assim também tende a ser separatista, prega-se a liberdade individual sem consciência de toda a estrutura machista. Logo, acaba sendo um feminismo a mercê de homens. Nesse tipo de feminismo vem a falsa liberdade sexual. Ainda temos muita dificuldade de falar ‘não’, de priorizar o nosso prazer, de fazer sexo no primeiro encontro, por medo do que o outro vai pensar.”
O movimento feminista é rodeado de mitos, a psicóloga lista quatro deles:
• Feminismo é o oposto de machismo: “As pessoas não entendem que o machismo é uma forma de preconceito, enquanto o feminismo é uma luta política. Além disso, o movimento não faz parte de uma estrutura da sociedade, diferente do machismo, o que chamamos de patriarcado.”
• Feministas são ‘abortistas’: “Nem toda feminista gostaria de fazer um aborto, inclusive não conheço mulheres que gostariam de fazer aborto. O que queremos é ter direito de mandar no nosso próprio corpo. O que não é divulgado, e as pessoas não entendem, é que até os três meses de gestação é considerado um feto, não um bebê, ou seja, não tem terminações nervosas prontas para sentir dor e qualquer outra coisa.”
• Feministas são peludas: “Não é que mulheres não podem ou não devem se depilar, só queremos que as mulheres questionem o papel disso, quanto gastam, quanto tempo perdem, a dor que sentem e se é necessário.”
• Feministas odeiam homens: “Não odiamos homens, e sim a socialização masculina. Obviamente vamos sentir medo de homens pela característica social em que eles estão, e isso é uma forma de proteção. Até um homem provar que não é aquilo, teremos medo, e está tudo bem.”
Por onde começar
A importância do engajamento do movimento feminista é clara, e não significa fazer parte de algum grupo. Para quem não sabe por onde ou como começar, Carolina Oms explica que não existem regras, e indica buscar conhecimento a partir de livros, podcasts, textos, vídeos e cursos. Entre as obras sobre o tema, ela destaca bell hooks, “O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras”, e “Você já é feminista”, da AzMina.
“Existem muitas informações hoje, e a minha recomendação é procurar em veículos que se dizem abertamente feministas e são independentes, pois muitas vezes existe um feminismo apenas cosmético, afinal está na moda parte do discurso feminista, que serve apenas mulheres de classes mais altas, sem tratar as questões que afligem todas as outras. O feminismo precisa abranger todas as mulheres, para isso deve ser independente de amarras financeiras e de pressões.”
Lavínia complementa: “Não podemos nos deixar ser enganadas por isso de ‘está tudo bem’, porque ainda não somos livres. Há muitas mulheres com discurso de ‘eu consigo’, mas não se trata de uma experiência individual, e sim do social, de uma cultura, uma estrutura.”
A psicóloga indica a prática da sororidade, ou seja, a empatia e união entre as mulheres. Ela destaca que a rivalidade feminina é fruto do patriarcado, uma estratégia política para enfraquecer e dificultar alianças. “Precisamos desconstruir essa ideia de que mulheres são rivais. Precisamos criar alianças entre mulheres, porque somos nós que vamos lutar pelos nossos direitos. Os homens não farão isso pela gente. Quem está em um lugar de privilégio, não quer perder”, destaca.
Uma mudança cultural leva anos, séculos, por isso é importante engajar o conhecimento e a consciência entre as gerações. Ana Clara indica a educação feminista para crianças, bem como a terapia com psicóloga feminista para os pais e filhos. “O que podemos fazer individualmente, pensando no coletivo, é ter um desenvolvimento menos baseado em gêneros, desde a questão de cobrança de comportamentos a uso de determinadas roupas e brinquedos estereotipados. Crianças são crianças.”
As especialistas reforçam a necessidade da busca contínua por conhecimento sobre o tema e concluem que a transformação estrutural pode trazer ganhos que refletirão em toda a sociedade, em especial entre as mulheres, que deixarão de ser inferiorizadas e serão autossuficientes, livres de padrões e opressões.